quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

ARROGÂNCIA

Conto. Autoria: Vanessa Morelli

A porta estava fechada. Marlene tinha esquecido suas chaves em algum lugar, não lembrava bem onde. Pensou em tocar a campainha do vizinho, mas achou que seria inconveniente. Tentou se lembrar onde tinha deixado, quem sabe dessa maneira pudesse voltar e pegá-las. Fez força, nada. Imagens do dia inteiro passaram na sua cabeça, entretanto nenhuma que a fizesse resolver seu problema. Estava presa, do lado de fora.


A festa estava ótima. Provavelmente entre vai e vem, as chaves deveriam ter caído. Lembrou-se daquele homem. Ele a pegou com tanta força, com uma intensidade impossível de ser descrita. E as suas amigas? Quanta inveja! Sim, inveja! Elas estavam de queixo caído. Realmente ele era de uma elegância e beleza assustadoras. E quanta educação! Sabia andar perfeitamente. Seus passos eram de um rei. Quando o viu, jamais pensou que se perderiam entre beijos e abraços. Que fim de festa! Chegou até mesmo a cogitar a possibilidade de deixar seu carro no estacionamento e ir com ele alegando precisar de uma carona. “Não, imagina! Não sou como as outras”. Quanta arrogância e vaidade de Marlene.

Agora se encontrava do lado de fora de sua casa. Estava muito frio e Marlene vestida de tomara-que-caia. Faria o que então? Esperar o dia amanhecer e chamar o chaveiro? Seriam horas de relento. Poderia ligar, mas para quem? Para ele? Nem pensar! Marlene era orgulhosa demais para cometer um erro! Teria de contar que perdeu as chaves, isso seria um absurdo, seria a confissão de um erro. Marlene era independente demais para precisar de alguém.

- O tempo passa num instante, logo amanhece e resolvo. Calma! – disse alto.

Sessenta segundos depois, Marlene pega o celular de sua bolsa. Ligar para quem?

- A Cleide!

Tentou. Cleide não atendeu o seu chamado. Pegou então um cartão que se encontrava do lado de sua carteira. Ficou olhando, observando cores e textos. Quase que hipnotizada pelo cartão de cor vermelha. Cor da paixão! Deveria ser um sinal!

- Sinal vermelho! Pare com isso! Nem pensar...

Alguns minutos haviam passado e Marlene, olhando o cartão vermelho, ouviu uma voz de sua mente, deveria ser o id freudiano:

- Procure-me! Vamos! Procure-me!

Logo sua criação protestante entrou em ação:

- Nem pensar, só estando muito louca...

Entre o sim e o não, confusa, como toda adolescente. Porém, Marlene era uma mulher decidida, madura e na casa dos trinta.

- Não seria uma má idéia.

Uma intervenção atravessou seu pensamento:

- Marlene, você não sabe o que faz!

Dormiria no carro? Não parecia uma má idéia, afinal quantas pessoas não passaram por isso e provavelmente tomaram essa atitude? Pelo menos ela dormiria no carro, livre da friagem. Abriu a porta do veículo, acomodou-se no banco traseiro. Estava muito desconfortável. Decididamente muito incômodo!

- Não, Marlene, não! – resmungou.

Tentou convencer-se de que estava satisfeita, tanto como num colchão recém-comprado. A fome surgia somando-se a irritação do sono. Marlene era forte, bem resolvida, tiraria isso de letra. Agüentou firme. Marlene também era vegetariana e como sofrem os vegetarianos! Onde comeria? Não comeria!

Inquieta, Marlene pegou novamente o cartão. Ligar? Sim, sim, sim! Não, não, não! Ligou, nem esperou tocar e desistiu.

- Deve estar dormindo – justificou-se.

Como ele poderia ser tão atraente, bonito, simpático e de ombros tão elevados? Possuía um dom natural, um carisma incontestável. Imaginou-se com ele debaixo dos lençóis. Deliciosamente saboroso, não como aperitivo, mas como prato principal.

Novamente apertou as teclas de seu celular. Deixou tocar. Esperou ansiosa. Uma voz máscula atendeu. Era ele.

- Não costumo ligar no mesmo dia, muito menos nesse horário, mas perdi minhas chaves e preciso de abrigo.

Ele se prontificou a ajudá-la. Deu seu endereço. Ela anotou com dificuldade, afinal a iluminação não era muita e encontrar uma caneta em sua bolsa também não foi fácil. Desligaram.

- E agora? Vou?

De posse de seu endereço, que mal havia passar uma noite tranqüila em mãos cuidadosas e atenciosas? Sob essa perspectiva, convenceu-se totalmente. Ligou o carro e pôs-se a procurar a rua que ele havia dito. Não conhecia muito bem a zona oeste, francamente não conhecia nada. Não ligaria outra vez para perguntar. Marlene tinha astúcia, era inteligente e perspicaz. Rodou, rodou e rodou. Viu que a gasolina estava acabando, por sorte encontrou um posto aberto. Mandou encher. Marlene não pedia, mandava!

- Deve ser aqui!

A rua tinha um nome parecido. Não encontrou o número. Percebeu o engano. Onde seria a bendita? “Estava de carro”, pensou.

E rodou, rodou e rodou. Nenhuma rua com aquele nome. Era só não desanimar, uma hora encontraria! Virava à direita, virava à esquerda, subia, descia, atravessava farol vermelho, baixava a velocidade em ruas de paralelepípedo, acelerava nas retas. Estava cansada, queria dormir, nem mais pensava no seu príncipe galanteador da festa. Sabia que chegaria com olheiras acentuadas e cara de acabada. Até que cruzou uma rua que parecia ter o nome da maldita rua que procurava. Finalmente achou!

Havia amanhecido. Olhou sem querer para o relógio que informava sete horas da manhã. Era a hora de encontrar o chaveiro e foi em busca do senhor dos milagres. Mal sabia que ele, o príncipe da festa, a esperava com champagne e suas chaves nas mãos.

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