segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

EMBRIAGADOS

Conto de Vanessa Morelli

Lúcia é poetisa. Gosta de lua e boemia. Tem um anel que lhe foi dado de geração pra geração e o guarda com muito carinho. Guarda porque não pode usar. É uma relíquia que vem de seus antepassados, em ouro e pedras preciosas, de valor emotivo, muito cara. Fragilizada por sua natureza sensível, precisa descobrir uma maneira de ganhar dinheiro suficiente para pagar suas dívidas que são muitas, caso contrário terá de vender esse tesouro que para ela não tem preço. Sua família jamais a perdoaria.
Sozinha, Lúcia faz o que pode. Não é extrovertida. Sua natureza é contida e exteriorizar emoções, para ela e para o mundo, é praticamente impossível. Lúcia quer ser mãe, quer ter uma filha, uma menina que possa dar continuidade à família Sousa.
Alcides é apaixonado por Lúcia, mas ela não está preparada para ele. Ela nunca está preparada. Esta mulher poetisa não está pronta ainda para um relacionamento amoroso e afetivo. Mas Alcides é teimoso e acredita que querer é poder. Todos os dias, leva um buquê para Lúcia que, como sempre, fica sem palavras.
Ela até gosta de Alcides, mas o acha um tanto soberbo, materialista, um molde da sociedade capitalista. Mesmo assim, sente uma certa afinidade, embora não saiba transformar em palavras o que de fato sente.
Fica comigo, vamos! Vou te fazer feliz.
Lúcia ouve as declarações de Alcides com atenção e tenta buscar uma explicação. Tem de responder, mas o que responder? Sim, fico? Não, somos incompatíveis?
Alcides teve dificuldades na infância. Seus pais haviam se separado enquanto ele era menino. Passou a maior parte da sua adolescência entre ir e vir, o que explica sua carência afetiva e uma vontade de se prender a algo concreto. Sabe que a família que irá escolher poderá fazê-lo feliz, um homem satisfeito. Sabe que a vida é feita de escolhas e nem sempre as pessoas são da maneira que se quer, às vezes é preciso tolerá-las.
Lúcia tem pressão baixa. Alcides tem pressão alta. E se dizem que os opostos se atraem, esse casal haveria de ter uma união perfeita. Lúcia gostava de humanas, de ler e escrever, principalmente poemas, já Alcides adorava números, era uma calculadora ambulante.
Lúcia ainda não respondeu. Tem de dar alguma resposta, qualquer uma, sim ou não. Mas tem medo. Lúcia tem medo. Medo da vida, medo de tudo. Tem medo de se arriscar. Ela sabe que Alcides é corajoso, ambicioso e amoral. Sente seu sangue correr de forma vibrante e irregular. Sabe que se ficar com ele é por pouco tempo. Ela é água, ele é óleo, ambos não se misturam. A sua transparência a incomoda, quer ser tão profunda quanto Alcides. Não sabe que Alcides quer ser água como ela.
Os dois falam muito. Ela, por defesa. Ele, por narcisismo. Alcides adora chamar atenção e sabe disso. Lúcia também gosta, também quer, mas desconhece.
E então... juntos ou não?
A paciência de Alcides não é muita, a de Lúcia também não. Alcides é sincero, embora sua sinceridade às vezes machuque. Lúcia também é sincera, até certo ponto.
Os dois se abraçam. Olham-se. Beijam-se com uma tensão violenta. Existe uma química fortíssima entre eles. Não se agüentam, é muito desejo. O sangue corre nas veias bombeando o coração e a mente embriagada de muita química hormonal. É vibrante, inquietante. Querem se livrar das roupas, mas não podem. Lúcia e Alcides estão em ambiente público.
Vamos para outro lugar?
Lúcia vacila. Devo ou não devo? Vai então.
Só conseguem pensar em saciar esta sede. A brasa queima violentamente. Os dois esqueceram a calma bem no momento em que aconteceu aquele beijo. Foi no beijo. Aquele beijo acumulou mais tensão da que estava presente. O desejo é delinqüente. Lúcia pensava: “é ele!”, “eu quero”, “eu desejo”, “eu amo”, “eu enlouqueço”.
Passam antes num posto, colocam gasolina, calibram os pneus e entram na loja de conveniência para comprar algumas coisinhas para acrescentar essa noite que desperta os animais mais tranqüilos da floresta. Chegam no motel com uma garrafa de vinho na mão. Não havia copo e esqueceram de comprar. Decidem beber no gargalo. Alcides fica altamente sob frágil situação de tensão. Lúcia controla-se para se ater à garrafa de vinho. Beberam meia garrafa de vinho. Riram um pouco. Tensão. As cabeças de Lúcia e de Alcides estavam borbulhando, em temperatura de explodir. Quando os corpos não mais agüentaram a distância, voaram um sobre o outro. Agora estão sob o efeito da lua, do vinho, da corrente química que passa pelos corpos. Completamente embriagados.
Caem na cama, já sem roupas. Precisavam se despir. Precisavam ser um só, sentir o calor do corpo do outro. E como era quente! Nenhum dos dois havia sentido isto antes. Eram descontrolados. Os corpos agiam por si só, sem pensar, se pediam e careciam um do outro. Não tinham idéia do quanto.
Carícias selvagens por todos os lados. Gemidos. Sensações. Aromas e odores desconhecidos e altamente histéricos. Um virava sobre o outro, por cima, por baixo, de lado, de pé, de quatro, de ponta-cabeça, fazendo acrobacias de todos os tipos. E não era exibicionismo, era pura e simples excitação. Os dois se desejavam, faziam amor como nunca antes fizeram em suas vidas.
Que sensação era aquela? Um gozo infinito.
E após a maior das sensações já vivida, eles se calaram. Cada um num canto da cama, num mergulho tão pessoal e indescritível.
Lúcia espera que Alcides fale alguma coisa. Ele não quer falar, não tem como falar. Ela pergunta:
Ainda quer ficar comigo?
Alcides pensa. Ele quer, mas não pode. Ele a deseja, mas não pode. Como não ter controle de si mesmo? Como não poder controlar uma embriaguez? Esse envolvimento seria um risco, e por mais ousado que fosse, ele se amava muito e não suportava a falta de domínio, de controle sobre o outro e sobre ele mesmo. Novamente pensa. O silêncio é angustiante para ambos. Diz:
Você está certa. Somos incompatíveis.
E outra vez, Lúcia mergulha na realidade. Como farei para ter para sempre o tesouro comigo?



* Conto de Vanessa Morelli devidamente registrado na Biblioteca Nacional.
Contato: vamorelli@ajato.com.br

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